A LONGA MARCHA - O PESO DOS PASSOS, O FARDO DA SOCIEDADE
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A Longa Marcha não é apenas uma ficção distópica: é um espelho incômodo da complacência moderna. Foto: Divulgação/Starz Entertainment
Por Vinícius Bastos
Adolescentes em arenas de sobrevivência, violência televisionada, distopias sobre poder e opressão. Já vimos isso muitas vezes desde que Jogos Vorazes virou fenômeno. Mas A Longa Marcha, dirigido por Francis Lawrence e baseado no romance homônimo publicado por Stephen King sob o pseudônimo Richard Bachman, prova que ainda há fôlego no gênero quando a matéria-prima é tão brutal, minimalista e alegórica.
A premissa é simples e devastadora: cinquenta adolescentes participam de uma competição anual em que precisam caminhar sem parar, mantendo uma velocidade mínima. Quem desacelera, tropeça ou tenta sair da rota, leva um tiro. O último sobrevivente é o vencedor. Parece um exercício de monotonia, mas o que poderia ser repetitivo se transforma em um épico sufocante sobre amizade, sacrifício e a crueldade de uma sociedade que normaliza a violência como espetáculo.
Francis Lawrence, veterano das distopias modernas, encontra aqui um desafio distinto: filmar um longa em que os personagens fazem apenas caminhar e conversar. Contra todas as expectativas, o ritmo nunca desmorona. A tensão cresce a cada passo, e a monotonia se converte em hipnose, com diálogos carregados de peso emocional e pequenos gestos que dizem mais do que grandes explosões ou efeitos especiais. É um filme de horror humano, que prende o espectador pelo silêncio entre as palavras e pelo som dos passos no asfalto.
Mais do que a mecânica da competição, o coração da história está nos laços criados entre os personagens. O vínculo entre Ray Garraty (Cooper Hoffman) e Peter McVries (David Jonsson) é o motor emocional do filme, evocando tanto a cumplicidade de Red e Andy em Um Sonho de Liberdade quanto as amizades marcantes de outras obras de King, como Conta Comigo ou It: A Coisa. Jonsson, que já brilhou em Alien: Romulus, entrega aqui mais uma performance arrebatadora, enquanto Hoffman confirma que carrega a força dramática de seu sobrenome. Juntos, eles fazem a aproximação de duas pessoas em meio ao horror ser algo profundamente comovente.
A violência, aqui, não é divertida nem catártica. É perturbadora, crua, física. O público vê corpos colapsando por exaustão, delírios de febre, mortes súbitas que parecem tanto acidentes quanto execuções. Há paralelos claros com a Guerra do Vietnã, que inspirou King a escrever o romance: jovens enviados para morrer em um espetáculo sem sentido, com suas mortes transmitidas e consumidas como entretenimento nacional. Se nos anos 1970 as imagens do Vietnã na televisão geraram revolta, o filme sugere que hoje estamos anestesiados, acostumados demais com massacres e tragédias diárias.
Nesse sentido, A Longa Marcha não é apenas uma ficção distópica: é um espelho incômodo da complacência moderna. É sobre uma sociedade que transforma sofrimento em espetáculo e sacrifício em moeda de troca. É sobre como a esperança, a amizade e a resistência ainda podem florescer, mesmo quando o chão parece nos empurrar direto para o abismo.
Ao final, o filme é um soco no estômago e, paradoxalmente, um abraço apertado. Brutal em sua violência, mas belo em sua humanidade. Um daqueles raros exemplares do gênero que não só entretém, mas permanecem caminhando com você muito depois de as luzes da sala se acenderem.
Redação





